domingo, 4 de novembro de 2012

Um ponto para debate: as organizações sociais de saúde em São Paulo.

        O caput do artigo 196 da Constituição Federal estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Por meio da imposição de uma série de mecanismos, tais como o gasto mínimo com a saúde (CF, art. 198), as competências de cada ente federativo e suas relações com organizações que não sejam de Direito Público, assim como a proibição da participação de organizações estrangeiras no setor, se tem a estrutura pela qual a Saúde deve funcionar no Brasil, para que este direito fundamental seja garantido a todos os cidadãos. 
Com a corrida eleitoral no município de São Paulo, a questão das Organizações Sociais de Saúde (OSS) voltou a ser discutida quando o candidato José Serra (PSDB) afirmou que o candidato oponente Fernando Haddad (PT) havia dito que acabaria com a parceria da prefeitura com organizações sociais de saúde. Modelo ora defendido, ora questionado, é necessário que se pontue quais são os principais dispositivos legais que regulamentam a questão das Organizações Sociais de Saúde, que passam a poder firmar os chamados contratos de gestão.
O modelo das OSS foi estabelecido no município por meio da lei municipal nº 14.132, sancionada durante a gestão de José Serra na prefeitura. É importante apontar que o Estado de São Paulo já havia tratado desta questão com a promulgação da lei nº 846, na qual estabelecia obrigações para estas organizações como a de somente servir o sistema público e as diretrizes para a seleção dessas organizações. Os problemas que normalmente são apontados decorrentes da prática destas leis são: a falta de critérios claros para a seleção destas organizações; a inconstitucional interpretação de que as organizações somente se atrelam a processos licitatórios quando selecionados, sendo dispensadas deste mecanismo para a realização de suas atividades fins; e com isso, um baixo índice de accountability.  
A Lei nº 8080 de 1990, que dispõe da regulamentação do Sistema Único de Saúde, surge num contexto de luta por direitos sociais que coexistia com uma certa descrença na capacidade do Estado em administrar e prover serviços de qualidade aos cidadãos. Ressalta-se também que o panorama econômico era desfavorável no cenário latino-americano, o que praticamente inviabilizava politicamente a implantação de um sistema universal de saúde, devido aos custos que a ação implicaria, que iria em direção contrária ao receituário econômico estabelecido pelo FMI. Enxerga-se tal conflito na referida lei quando é estabelecido, em seu quarto artigo 4º, que a iniciativa privada pode participar complementarmente do Sistema Único de Saúde. 
De certa forma, tal questão demonstra a debilidade do Estado em prestar seus serviços, e novamente a descrença (sobretudo governamental) em sua capacidade. Em relação a esta lei, aponta-se um dos centrais problemas em São Paulo: hoje, as OSS contam com um orçamento de R$ 1,1 bilhão (valor do exercício de 2011, e equivalente a construção de mais de 10 hospitais públicos), e são responsáveis por mais de 75% dos atendimentos e correspondem a mais de 60% do total das organizações de saúde que prestam serviço na cidade. Complementaridade ou um caminho rumo a exclusividade destas organizações? 
Aquilo que foi idealizado como uma aplicação do princípio da subsidiariedade estatal (conceito utilizado por Maria Sylvia Zanella di Pietro) tornou-se uma fuga aos instrumentos de controle e moralização pública instituídos pela Constituição Cidadã e pela legislação. A atividade de fomento estatal (de que o patrocínio às OSS é – ou deveria ser – uma faceta) passou a se sobrepor a outra atividade estatal, de natureza diversa: a prestação de serviços públicos. Atividades antes entendidas como distintas e complementares passaram a ser sobrepostas, uma em detrimento da outra, com o "fomento" convertido na própria prestação de serviços públicos pelo Estado (ou melhor, por entidades em "parceria" com o Poder Público).  

As vantagens apontadas deste modelo seriam a alta capacidade de ampliação da rede, pois não necessitam de licitação para reformas no serviço e com isso um custo operacional menor, conforme aponta Irineu Frare da Fundação Getúlio Vargas em entrevista a Rede Nacional de Advogados especializados na Saúde. De qualquer forma, ele também aponta o baixo controle do uso dos recursos públicos que tem como efeito um retrocesso em relação ao processo de publicização e transparência no uso de recursos públicos.
As parcerias com o Terceiro Setor (seja via contratos de gestão com OS's, seja via termos de parceria com OSCIP's) podem ser, em suma, importantes meios de complementação da atividade estatal na disponibilização de serviços públicos não exclusivos (saúde, educação e assistência social). A agilidade de entidades privadas não lucrativas, bem como sua especialização nas respectivas áreas de atuação, são vetores positivos na universalização de serviços de saúde em um país que ainda ostenta o descalabro social medido em estatísticas e visto com um simples olhar às ruas. No entanto, o objetivo com essas parcerias é a ampliação de serviços, e não a fuga ao dever-poder (na feliz expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello) estatal de garantir diretamente a prestação de serviços públicos (ou mediante concessão e permissão, a teor do art. 175 da CF). 
Em assim sendo, as críticas devem pairar não sobre o modelo teórico das parcerias com o terceiro setor (consagradas inclusive no texto constitucional, de forma indireta, por meio da EC nº 19), mas sobre a prática dos contratos de gestão/termos de parceria. Estes instrumentos não podem ser simples meios de passar ao largo dos deveres de publicidade, isonomia e impessoalidade que pesam sem exceção sobre o uso de recursos ou prerrogativas públicas (CF, art. 37, caput). Também em relação ao controle de gastos, resta a solar disposição constitucional (art. 70 e parágrafo único) para que se veja o dever dos Tribunais de Contas de fiscalizar a aplicação de "dinheiros públicos" (na dicção constitucional) investidos para viabilizar os contratos de gestão. Por corolário, temos que as mesmas consequências previstas no texto constitucional devem ocorrer em relação às OS, ou seja, pode haver a suspensão dos contratos, e deve haver detalhada prestação de contas ao respectivo Tribunal de Contas. 
Com a fiscalização real do Poder Público e da sociedade, poderemos ter em tais parcerias o alento desejado quando de sua implementação efetiva no Brasil: a complementação e o auxílio no projeto de universalização dos serviços públicos brasileiros, de modo a cumprir os objetivos fundamentais da República – em especial, os do art. 3º, I e III.

         - Por Yuri Fraccaroli, graduando do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo. 
           Artigo realizado para a disciplina de "Gestão de Organizações Sem Fins Lucrativos" ministrada pelo Prof. Dr. Marcelo Arno Nerling


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