segunda-feira, 25 de agosto de 2008

CORONELISMO

Pra quem não pegou o texto, tenta fazer uma mescla destes texto para simular uma resenha....





Coronelismo, Enxada e Voto*
Celina Vargas do Amaral Peixoto
(Socióloga e diretora do Sebrae/RJ)
Este é o título de um livro clássico nas ciências sociais escrito por Victor
Nunes Leal, advogado, jurista, homem público editado pela Forense em
1949, e cuja releitura, nesse momento, próximo às eleições municipais
do ano 2000, provocou-me algumas reflexões.
Segundo o autor, Coronelismo é uma manifestação do poder privado –
dos senhores de terras - que coexiste com um regime político de
extensa base representativa. Refere-se basicamente à estrutura agrária,
que fornecia as bases de sustentação do poder privado no interior do
Brasil, um país essencialmente agrícola - monocultor e exportador de
matéria prima – naquela época. Mas Coronelismo quer dizer também
compromisso, uma troca de favores entre o poder público em ascensão
e os chefes locais, senhores da terra, que, decadentes, lutavam pela
sobrevivência.
São resultantes deste compromisso algumas características do sistema
Coronelista que ainda perduram em nosso país – o mandonismo, o
filhotismo, o nepotismo, o falseamento do voto e a desorganização dos
serviços públicos locais.
O tipo de liderança que caracteriza o coronel é o fato de que ele
comanda discricionariamente um lote considerável de “votos de
cabresto”. Independentemente de ser originário ou não da Guarda
Nacional, sua procedência vem da qualidade de ser proprietário rural,
responsável por um conjunto de trabalhadores que gravitam em torno
de suas terras. Sobre essas pessoas, os coronéis exercem o poder
através de seu prestígio pessoal, mantendo-os numa relação de
dependência em que o “voto de cabresto” é uma das moedas de troca.
Segundo dados do IBGE, a população do Brasil, recenseada em 1º de
setembro de 1940, estava distribuída segundo a situação dos domicílios
em : urbana – 9.189.995 (22,29%); suburbana – 3.692.454 (8,95%);
rural – 28.353.866 (68,76%). Portanto, naquela época, a maioria do
eleitorado residia e votava no interior do país, com uma predominância
do elemento rural sobre o urbano. O mecanismo eleitoral do regime
representativo exigia despesas tanto para o alistamento como para o dia
das eleições: documentos, transporte, alojamento, refeições, dias de
trabalho perdidos, roupa e até chapéu. Tudo tinha um custo a ser pago.
Essas despesas eleitorais, em princípio, eram pagas pelos chefes
políticos locais.
Em contrapartida, a posição do coronel ou do chefe político diante de
seu distrito ou município exigia uma reciprocidade. Era com seu
prestígio pessoal que o coronel obtinha realizações de utilidades públicas
para a sua localidade, como escolas, estradas, ferrovias, igreja, postos
de saúde, luz, rede de esgotos e água encanada. Essas obras tinham
por objetivo não só desenvolver o seu espaço, como também construir e
preservar a sua liderança e aumentar a dependência política do seu
eleitorado.
Não é difícil concluir que esses remanescentes do privatismo oriundos
da Guarda Nacional instituída em 1831, são paradoxalmente
alimentados pelo poder público dos anos 40 através do regime
representativo e do sufrágio universal que não podia deixar de contar
com o eleitorado rural, maioria no país naquela ocasião.
Victor Nunes Leal aprofunda sua análise falando de um “sistema de
reciprocidade”: “de um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que
conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de
outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do
erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em
suma, o cofre das graças e o poder da desgraça”.
A situação, tão bem descrita pelo autor, apresenta hoje conseqüências
desastrosas. Se, nas últimas décadas do século, a população rural
correu para as cidades atraída inicialmente pelo processo de
industrialização e deixou de usar a enxada como instrumento de
trabalho, a relação entre o coronel e o voto parece sobreviver sob novas
formas diversificadas do “Coronelismo” no Brasil urbano.
A relação de reciprocidade ganha novos contornos e amplia a sua esfera
para outras arenas: a vaga na escola só é concedida pelo vereador; a
rede de água e esgoto ou a instalação elétrica compete ao deputado
estadual; e os investimentos em transporte ou pólos de
desenvolvimento ficam com os deputados federais e os senadores.
As políticas públicas que têm por objetivo melhorar e sustentar os bons
índices de Desenvolvimento Humano, como a educação, a saúde e o
meio-ambiente, para citar apenas algumas, acabam sempre privatizadas
pelas verbas distribuídas diretamente aos parlamentares, pela
contratação de cabos eleitorais para assumir funções nobres em órgãos
públicos ou pelos “currais comunitários” desenvolvidos pelos “coronéis
modernos”.
Este procedimento de utilização direta ou indireta dos recursos públicos
mantém, alimenta e conserva a “relação de reciprocidade” e acaba por
atender mais à sustentação das lideranças dos “coronéis modernos” em
detrimento da implantação, organização e democratização de políticas
públicas voltadas para o cidadão e para a sociedade.
Às vésperas das eleições municipais do ano 2000, se desejamos
construir um país mais justo, solidário e igualitário para nossos filhos,
precisamos lutar por políticas públicas e votar em candidatos que
defendam valores e uma ética pública para nosso espaço local.
* Artigo publicado no Jornal O Globo em 10 de fevereiro de 2000.





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MINHA RESENHA - BASILIO - INACABADA

As raízes
A Guarda Nacional criada em 1831 pelo governo imperial, extinguiu as milícias e ordenanças substituindo-as pela nova corporação. A Guarda Nacional passou a defender a integridade do império e a Constituição, “sendo que em cada um dos nossos municípios existia um regimento...” . “O posto de coronel era geralmente concedido ao chefe político da comuna.” (página 21, rodapé). Curiosidade, já naquela época, os coronéis gozava de prisão especial, não podendo ser presos em cárceres comuns.
Como os quadros da corporação eram nomeados pelo governo central ou pelos presidentes de província, iniciou-se um longo processo de tráfico de influências e barganhas política. Como o Brasil se baseava estruturalmente em oligarquias, esses líderes, ou seja, os grandes latifundiários e oligarcas - menos de 8% dos donos de terras detinha quase 65% das terras, enquanto que para aproximadamente 75% do pequenos proprietários de terras estava reservado apenas 11% das terras, (página 29) - começaram a financiar campanhas políticas de seus afilhados, e ao mesmo tempo ganhar o poder de comandar a Guarda Nacional.
Devido a esta estrutura, a patente de coronel da Guarda Nacional, passou a ser equivalente a um título nobiliárquico, concedida de preferência aos grandes proprietários de terras. Desta forma conseguiram adquirir autoridade para impor a ordem sobre o povo e os escravos.

A disseminação pelo Brasil e a falta de controle
Devido ao seu território continental, portanto à falta de mecanismos de vigilância direta dos coronéis pelo poder central, e pela população pobre e ignorante, o Brasil passou a ser refém dos coronéis. Estes "personificaram a invasão particular da autoridade pública". Coube a eles “ao seu interesse e à sua insistência ... os principais melhoramentos do lugar. A escola, a estrada, o correio, o telégrafo, a ferrovia, a igreja, o posto de saúde...“ “....tudo exige o seu esforço, às vezes um penoso esforço que chega ao heroísmo.” (página 37).

O compadrio
Começaram então a surgir as relações de compadrio, onde os elementos considerados inferiores e dependentes submetiam-se ao senhor da terra pela proteção e persuasão. Se por um acaso houvesse alguma resistência de alguma parcela dos apadrinhados, estes eram expulsos da fazenda, perseguidos e assassinados impunemente. Muitas vezes juntamente com toda a sua família para servir de exemplo aos outros afilhados.

Primeira República
Com a Proclamação da República do Brasil até o final da república velha, em 1930, o coronelismo se manteve em relativo equilíbrio.
Promulgada a primeira constituição republicana, adotou-se um sistema eleitoral, onde o voto era aberto . Cada chefe político tinha, portanto, pleno controle sobre seus eleitores e, a rigor, a democracia era uma mera ficção.
Após o governo Campos Sales houve uma coligação de poderes estaduais que favoreceu o pleno florescimento do coronelismo. O aumento da riqueza agrícola, e portanto do poder dos grandes latifundiários e oligarcas, propiciou sua chegada à esfera do poder central. Os chefes dos estados, passaram a ser os coronéis dos coronéis, os currais eleitorais se multiplicaram no país, a compra e troca de votos dos eleitores por favores e apadrinhamentos passou a ser prática comum nas grandes cidades agora, além da área rural

A manutenção do poder, e a neutralização da oposição
Qualquer coronel chefe de algum município que se opusesse a um coronel do estado, sofreria retaliações em forma de cortes de verbas para o município, que gerariam perda de votos e portanto, o líder caía em desgraça, isto é, opor-se ao governo do estado, implicava sérias privações para o chefe municipal e seus seguidores, principalmente no interior. Nos municípios mais ricos, com o aumento da cultura política da população, começou a haver uma certa oposição ao coronelismo. O problema porém, é que começaram a haver os coronéis de situação e os coronéis de oposição. Embora uma vitória eleitoral de um coronel de oposição, poderia ser considerada um fato raro, pois em caso de vitória deste, a máquina político-administrativa governamental trabalhava contra ele na política, no fisco, na justiça e na administração. O mecanismo era simples e eficiente, uma vez eleito, o opositor precisava de recursos, estes dificilmente viriam sem concessões.

CLIENTELISMO
Os coronéis ficam presos aos deputados estaduais e federais, pois além das indicações políticas advirem destes, os recursos para a construção de bem-feitorias na comunidade dependiam em grande parte dos recursos do governo federal. Dificilmente havia oposição ao governo federal, pois caso o coronel se opusesse ao governo este seria preterido na distribuição de verbas e consequentemente haveria uma maior cobrança por parte da população local e conseqüente “traição” na hora do voto. Portanto, mesmo que alguns coronéis quisessem, seria impraticável a oposição. Logo, por meio deste clientelismo o governo manteve por muito tempo um mínimo de oposição.

domingo, 10 de agosto de 2008

Aristoteles - aula 1 Pablo

Aristóteles - Filosofia do Homem:
Ética e Política [1]


Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Universidade do Porto



I. EM DEMANDA DE ARISTÓTELES E DA SUA FILOSOFIA DO HOMEM

1. Introdução. Brevíssimo Perfil e Perspectiva

Comecemos por recordar alguns dados consabidos.

Aristóteles nasce em Estagira, 384 a. C. e vem a falecer em Cálcis, em 322 a. C. Filho de Nicómaco, médico de Amintas II, rei da Macedónia, Aristóteles seria preceptor do neto deste, Alexandre Magno. Discípulo e amigo de Platão a quem se diz teria abandonado por amor da verdade (amicus Plato sed magis amica veritas), virá a fundar o Liceu, em que, segundo reza a tradição, dava lições enquanto passeava – peripatético, pois. Não parece que De Gaulle tivesse razão ao pressentir o sopro filosófico do Estagirita em cada coquista do jovem Imperador…Pelo contrário, contristado com os ímpetos imperiais de Alexandre, retira-se para Atenas. Após a morte deste, é acusado de ser partidário dos Macedónios, e perseguido, tal como já o havia sido Sócrates. Ao contrário do filósofo mártir, e para evitar mais um atentado contra a Filosofia, exila-se em Cálcis, onde morrerá, porém, um ano depois.

O quadro de Rafael, A Escola de Atenas, elucidar-nos-ia magnificamente sobre o carácter da filosofia de Aristóteles [2] . Neste, ele olha a terra, enquanto Platão contempla o céu. Aristóteles é um espírito enciclopédico, uma mente poderosa, mas sempre preocupada com o real. Diz-se anedoticamente que passou boa parte da lua de mel catando conchinhas para os seus estudos científicos [3] . Nada do humano lhe foi alheio. Alguma incompreensão relativamente ao filósofo parece dever-se ao abuso que, durante alguns momentos de decadência, os seus seguidores fizeram da sua doutrina, endeusada como autoridade intocável. Todavia, não se pode assacar tal culpa àquele que o próprio Augusto Comte apelidou de “filósofo incomparável”. Não deixa de ser curioso verificar que os críticos de Aristóteles por errado, e desligado da Natureza e do mundo, acabam por preferir o especulativo Platão, o utopista da República. As Éticas a Nicómaco, Retórica e Política, além de outras obras, incluem luminosas passagens sobre o Direito e a Política. Não sendo jurista – não se pode mesmo dizer que houvesse verdadeiros juristas antes do ius redigere in artem romano, sob inspiração aristotélica, aliás - , Aristóteles compreendeu perfeitamente a essência do Direito, e o seu contributo tem nestas áreas um valor inestimável – sempre apto a novas releituras e diferentes descobertas. Ao pensar as relações jurídicas como relações de proporção (nem desigualdade, nem igualdade matemática), ao entender o discurso jurídico como uma dialéctica, ao dividir a Justiça em justiça geral (moral, política, etc.) e justiça particular (especificamente jurídica, de atribuição a cada um do que é seu), Aristóteles clarificou os pro­blemas e desbravou a floresta inicial, permitindo depois aos Romanos a construção do belo edifício do Direito. Ao mesmo tempo que delimita o Direito, Aristóteles dá os primeiros passos para a autonomização da Política: claro na divisão das formas do governo, agudo já antes de Maquiavel sobre as formas de preservá-las e quanto à corrupção que as espreita, e, sob tudo, profundamente atento às várias formas de ser do homem, à etiologia humana – pois esse é o fundo das suas Éticas: os modos de o Homem ser…

2. Evolução, Edição e Metafilosofia

Rios de tinta se gastaram e continuarão presumivelmente a gastar-se com a intenção de reconstituir o verdadeiro pensamento de Aristóteles, com o fito de surpreender as diversas fases por que terá passado, de destrinçar as obras próprias das apócrifas, de refazer as actualmente indiscutidas, reordenando os respectivos livros, e até, dentro de alguns destes, alterando a ordem dos capítulos. Aristóteles é assim um enorme puzzle de múltiplas incógnitas. Inesgotável, mas, em grande medida também, desesperante. Para o nosso intento actual, não importam a maioria dessas questões, na verdade externas, hermenêuticas, arqueológicas, ou autorais. Não importa mesmo (ao menos não importa tanto assim) a pessoa histórica de Aristóteles [4] . O mais relevante para nós é um corpus textual que, embora com fortuna de recepção desigual (porque, naturalmente, mais ou menos actual numas e noutras épocas), se foi transmitindo ao longo dos séculos, e constitui inegavelmente não só uma importante reflexão sobre estas matérias aparentemente (ao menos) do punho de um grande filósofo, como também (e sobretudo) é em si mesmo digno de reflexão ainda hoje: pode servir para uma leitura e uma resposta aos desafios do presente.

Esta intenção “utilitarista” hoc sensu não repugnaria, contudo, ao Estagirita, que expressamente afirma o intuito prático deste trabalho, o qual, afirma, “de nada serviria” se não ajudasse a tornar-se “mais virtuoso” [5] . As finas e penosas análises dos filólogos e outros exegetas sobre os múltiplos problemas que povoam as obras principais que respondem à questão ética e política em Aristóteles, permitem-nos sem dúvida ficarmos mais avisados contra a visão ingénua de um autor que houvesse sido simplesmente e toda a sua vida “realista”, posando para a posteridade com a figura que lhe dá Rafael, no fresco da dita Escola de Atenas, apontando o solo das coisas concretas. Advertem-nos sem dúvida para a heterogeneidade e até pelo menos aparente contradição entre materiais reunidos tradicionalmente na mesma obra. Iluminam-nos quanto à provável inautenticidade ou carácter apócrifo de alguns textos (como a Ética a Eudemo e a Grande Ética), que assim – e também porque nada de verdadeiramente novo nos trazem – eliminamos do terreno da nossa investigação. Apontam-nos continuidades e descontinuidades, semelhanças e dissemelhanças que podem sugerir outra ordem na leitura dos textos, podendo fazer-nos suspeitar de cronologias de escrita diversas da normal narratividade do princípio/meio/fim, e dando-nos a entender que tanto editores pósteros como o próprio Estagirita teriam procedido por camadas de textos, por estratificações, nem sempre em grande diálogo entre si – o que potencia possíveis contradições, e inevitáveis repetições, nem sempre sendo ajudado pelas frequentes observações “de ordem” ou de “encadeamento” do filósofo. Tudo isto é verdade.

Mas há nestas verdades um bom conjunto de problemas.

Se o percurso intelectual de Aristóteles permite detectar uma fase mais idealista, e uma fase mais realista, nem por isso as interpretações sobre a ordem destas fases são unânimes. Se para um clássico como Werner Jaeger o normal é que, após vinte anos de Academia platónica, Aristóteles viesse ulteriormente a ganhar voos de distanciamento (e ainda assim gradual e mesclado) face ao génio do seu mestre, passando do platonismo ao verdadeiro aristotelismo [6] , já Ingemar Duering afirma precisamente uma evolução cronológica contrária: a uma primeira fase de rebeldia juvenil contrapõe uma maturidade de encontro com o idealismo do mestre [7] . E afirmará mesmo uma unidade de um Aristóteles que jamais teria embarcado nos excessos idealistas de Platão, antes tendo sempre em si coexistido o interesse especulativo e a vocação prática, o metafísico e o empírico.

François Nuyens, por seu turno, considera que a divisão em três períodos, começando na receptividade a Platão para culminar numa maior independência, seria a evolução mais compatível com a psicologia do Estagirita. O mais iconoclasta de todos os autores será certamente Zürcher [8] , que reconhece em Aristóteles um simples platónico, atribuindo ao seu discípulo Teofrasto (esse sim anti-idealista) ¾ dos tratados correntemente tidos por aristotélicos. Perante tais contradições, não deixa de ser sedutor pensar que não só Platão teria experimentado essa angústia do filósofo, ou “tragédia do filósofo”, que o distingue do dogmático, e que o obriga a evidenciar diferentes pontos de vista, expondo o seu pensamento na dúvida e na tensão [9] . Só que, enquanto do mestre da Academia dispomos de um abundante material de diálogos, caixa de ressonância desse discurso problemático a muitas vozes, o facto de os diálogos de Aristóteles se terem perdido prejudica-nos essa dimensão dialéctica e auto-reflexiva, dando-nos por um lado uma geral aparência de univocidade (que para os mais desatentos se poderia tá confundir com dogmatismo…), e por outro, vendo mais no pormenor, revelando-nos o que consideramos serem contradições…ou fruto da evolução de um pensamento.

Porque não, pois, um Aristóteles também com dúvidas, hesitações, e em que no limite poderiam até coexistir realismo e idealismo?

Não nos preocuparemos, assim, com o apuramento microscópico de verdades e veracidades que restituam o que é do autor, ou o que é o seu vero pensamento. Como avisadamente acaba por decidir Pierre Pellegrin, é preferível, neste caso, a douta ignorância à falsa ciência [10] : e muito facilmente caímos nesta última… Como afirmou este autor para as Políticas, depois de haver desbastado largas florestas de estudos eruditos (e contraditórios) sobre a matéria, fomos levados a concluir que, quer nas Éticas quer nas Políticas, a consideração dos textos canónicos, traz frutos. Sobretudo e antes de mais o de se evitar essa metafilosofia que evita que entremos no sumo da matéria [11] . Resolvam-se como se resolverem os graves problemas de atribuição e datação, o certo é que, pondo de parte o que é mais discutível, as Éticas a Nicómaco e as Políticas constituem inegavelmente dois excelentes monumentos de formação cívica (ética e política), cujas lições merecem uma apreciação ainda hoje [12] .

3. Nomos, Ethos, Telos – Normatividade, Etiologia, Teleologia

Sobre as lições a tirar da ética e da política Aristóteles importa antes de mais fazer algumas distinções. Uma coisa, desde logo, seriam as propostas éticas e políticas do autor, e outra a nossa lição a partir do diálogo com estas, que apenas podem funcionar como sugestão ou inspiração. Mas outra questão mais complexa se nos coloca. Terá Aristóteles tido realmente um intuito prescritivo ou normativo ao escrever as suas éticas e políticas?

Evidentemente que sempre se escreve ou para comandar ou para ser amado, e não sendo certamente este último o intuito do Estagirita, haveremos sempre de ver no que escreveu um fumus de intenção directiva. Mas há directividades e directividades… Normatividades e normatividades…

Um dos objectivos de Aristóteles poderia bem ser o da descrição mais ou menos desapaixonada (como a dos animais nas suas biologias) de tipos de homens e de tipos de constituições. Esta seria a perspectiva etimologicamente “ética” (de ethos, descrevendo, como que medicamente, a etiologia, o modo de ser). Contudo – e permitimo-nos voltar à nossa hipótese – Aristóteles não passara impunemente vinte anos com Platão. Aliás, tal poderá nem ser uma influência platónica, mas uma característica do seu próprio ser. E assim, não deixa de, por entre as descrições de conceitos constitucionais mais ou menos essenciais, para além da explicitação dos diferentes vícios, exageros face a uma virtude mediana, apontar por um lado para uma Constituição ideal, excelente, e, por outro, para a virtude.

Realista, por vezes cínico, alguns dirão até aqui e ali “maquiavélico” avant-la-lettre, Aristóteles não abandonará por completo os ideais. Um lugar paralelo poderemos encontrar na análise da Poética. Também este livro foi esquecido durante a Idade Média (também durante ela foi tido por inactual), e também o Renascimento o recuperaria com a pretensão de nele ver o cânone da clássica literatura que os tempos ditos de trevas teriam esquecido. O Romantismo oitocentista desferir-lhe-ia, por subordinado a epos diverso (mais barroco), um novo golpe de olvido, mas já no séc. XX (não porque clássico, mas decerto porque anti-romântico) se recuperou. Não, todavia, como regra de oiro de uma perfeição antiga que já poucos convenceria, mas como quadro descritivo dos modos de ser literários.

A verdade é que, no início deste livro, logo o Estagirita anuncia o seu intuito: falar do que faz os textos literários e o que os torna excelentes [13] . É, mutatis mutandis, a mesma coisa que, na prática, é levada a cabo nas Éticas a Nicómaco para as virtudes, e nas Políticas para as constituições. Esta ambiguidade entre o descritivo e o normativo (afinal entre o ser e o dever-ser, que na metafísica de Platão se encontravam [14] ) acompanha este Aristóteles da filosofia do Homem (anqrwpina filo-

sofia). Em todo o caso, a empresa aristotélica parece desejar uma certa purificação e autonomia do ético-político face ao metafísico. O que, sendo um ponto a favor da não-normatividade, todavia a não descarta por completo, já que, além do mais, um “dever-ser” pode ter outras radicações além da metafísica. Desde logo, importa a Aristóteles certamente essa normatividade da educação, que segundo ele (lição admirável para o nosso tempo!) deve ser a primeira preocupação dos legisladores [15] .

Talvez mais luz se projecte sobre a empresa aristotélica se aos paradigmas da normatividade e da simples descrição substituirmos o da teleologia ou finalidade. Não visa o filósofo na sua ética ou na sua política um bem substancial, absoluto, mas um bem que contribua para um fim profundamente humano: a felicidade. Da mesma sorte, a constituição excelente que se busca na política não se dirige a uma utopia sem lugar, sem povo, sem clima, sem solo, sem vizinhança, mas se almeja para cada comunidade concreta a constituição que melhor se lhe adeque.

4. Uma Filosofia do Homem: filosofia prática

Independentemente da presença persistente, mais ou menos subtil, do platonismo e do respectivo “idealismo” em Aristóteles, como aflorámos já, manifesta na não demissão deste quanto à procura de uma constituição excelente ou “estado ideal” (aristh politeia), a verdade é que o intuito manifesto e declarado do autor na Ética a Nicómaco é prático, e não de “especulação pura” [16] . Acresce que a conexão entre as éticas e as políticas é pelo próprio Aristóteles expressamente sublinhada: designadamente nos capítulos primeiro do Livro I e final do Livro X (o último) da Ética a Nicómaco. Procura-se na ética o máximo Bem. Mas ele depende da ciência suprema e “arquitectónica” por excelência, a Política, à qual todas as demais se subordinam, e que de todas as demais se serve numa Cidade [17] .

Acresce que, num mundo em que a maioria esmagadora dos homens se encontra submetida às paixões, a argumentação é frustre, e apenas se poderia acreditar no efeito formador de uma educação para as virtudes, numa pólis dotada de leis justas. É para tanto necessário estudar a ciência da legislação, que para Aristóteles é uma parte da Política. As linhas com que este tratado encerra são mesmo um convite ao estudo da Política [18] .

Por tudo isto, também se haverá de considerar a démarche politológica (hoc sensu) de índole prática e não simplesmente especulativa. São ambas exemplos de tecnh, ou arte: englobando quer a dimensão teórica ou conceptual, quer a dimensão fáctica ou agente na vida e no mundo. Uma filosofia prática, pois, esta anqrwpina filosofia, em que uma Política prepara as leis e uma ordem que permita a educação nas virtudes, caminho para a felicidade dos cidadãos. Se a maior felicidade é a vida contemplativa racional, também de algum modo o “andar a procurá-la” (para lembrar Almada Negreiros) na vida política (de acordo com as virtudes) pode constituir um segundo nível de felicidade.

II. DAS VIRTUDES NAS ÉTICAS A NICÓMACO

1. Perspectiva. O Livro introdutório

Todas as coisas possuem uma causa final, uma finalidade, uma teleologia. E é nessa teleologia que, como dissemos, funda Aristóteles a sua ética. Todas as coisas perseguem um bem. Contudo, na multiplicidade de coisas e de bens por elas perseguidos, os fins das artes arquitectónicas são os mais excelentes, devendo prevalecer estes e aquelas sobre o que releva das artes subordinadas. Como vimos, a arte arquitectónica por excelência é a Política. A Ética é mesmo considerada como uma forma de Política. Esta teria como objecto coisas belas e justas.

Aristóteles não deixa de nos advertir, a propósito da multiplicidade de opiniões em política, que o tipo conhecimento depende da natureza diversa dos objectos sobre que se exerce: não se podendo pedir ao retórico o mesmo tipo de demonstrações rigorosas que ao matemático. Com efeito, tal como se diz no Organon [19] , uma coisa é a verdade ou a certeza que se obtém quanto a ciências exactas, físicas ou naturais, em que é soberana a lógica ou a observação e a experiência, outra coisa, probabilística e falível, é o conhecimento que deriva da convicção que formamos nas ciências do homem (precisamente estas artes da ética, da política, e diríamos hoje também, desde logo, “do direito”).

Mas é curiosa a conclusão pedagógico-didáctica que daqui o filósofo retira: a pouca experiência da vida torna o estudo da Política – exemplo e mais alta arte arquitectónica – supérfluo para os jovens, por regra imprudentes, que só seguem as suas paixões [20] , enquanto a dureza da Matemática lhes conviria [21] . Naturalmente pelo treino também… E certamente porque (metáfora extraordinariamente útil) a verdade é que nenhuma excelência na lógica é capaz de substituir a experiência e a prudência nas coisas humanas. Donde, por muito cientista que Aristóteles seja, é à primeira arte das humanas que atribui a primazia, e não às ciências abstractas, formais, conceituais, ou sequer físicas. Em gíria actual, dir-se-ia: ciências moles só depois das ciências duras, na aprendizagem, mas não na precedência do valor.

Ligando-se sobremaneira a ética ao problema do Bem, o Estagirita, depois de se opor a Platão [22] , considera que o Bem é um fim perfeito, que se basta a si mesmo, tornando a sua simples presença a vida desejável sem necessidade de nada mais. Ora, o que é mais desejado entre tudo (não sendo em si mesmo apenas um bem, mas um conjunto ilimitado de bens) é precisamente a felicidade, sendo assim a felicidade a finalidade da acção humana [23] . Aristóteles começa por discutir o que seja a felicidade: aparta o prazer, que é baixeza escrava, tanto da plebe como de alguns membros das classes altas, assim como a riqueza, que só leva a uma vida de canseiras, e deveria antes ser considerada como um meio e não como um fim. Se a honra é o fim da vida política, frequentemente depende mais dos que honram do que quem é honrado, e assim passa a não ser uma qualidade própria, estando antes nestas condições a virtude. Mas nem ela se revela apta como felicidade, já que pode haver virtuosos abúlicos e, pior ainda, virtuosos infelizes [24] .

A felicidade é, outrossim, conforme à mais alta virtude humana [25] . Será, pois, a vida contemplativa a mais feliz, embora o sage tenha necessidade, para a tal se dedicar, de alguma prosperidade material, dada a sua natureza [26] . Aristóteles não nos deixa sem um aprofundamento do conteúdo dessa felicidade, e acabará por identificá-la com uma dada actividade da alma concorde a uma virtude perfeita [27] . Em todo o caso – e de novo vemos aqui a imbricação política e ética -, sendo o verdadeiro político o que, desejando transformar os seus concidadãos em gentes de bem, deve estudar as virtudes [28] . Esta é a rampa de lançamento de todo o mecanismo de estudo das virtudes, ao longo dos restantes livros, e com a divisão das virtudes em intelectuais (exemplificando com a sabedoria, inteligência e a prudência) e morais (dando como ilustrações a liberalidade e a moderação) termina este livro introdutório.

1. Das Virtudes em Geral - As virtudes intelectuais necessitam em boa parte da educação, da experiência e do tempo. Mas as morais também não são produto natural ou imanente. Não nascemos virtuosos. A natureza apenas nos tornou receptivos para as virtudes, capazes de virtudes, mas esta capacidade necessita absolutamente do concurso da nossa acção, pela maturidade e pelo hábito. As virtudes estão assim nos Homens não em acto, mas em potência [29] . É praticando que aprendemos, e é praticando as virtudes que nos tornamos virtuosos [30] . Tornamo-nos justos não por sabermos o que é a Justiça, mas por praticarmos a Justiça. E tanto mais justos seremos quanto mais a Justiça praticarmos [31] . Por isso é tão importante contrair bons hábitos desde a mais tenra infância [32] . A sã educação, como aliás já Platão advertira, consiste precisamente em que muito precocemente se aprenda a encontrar os prazeres e os sacrifícios ou desagrados nas coisas que respectivamente convém [33] . Não sendo nada indiferente para a nossa vida termos perante o prazer e ao desprazer uma atitude sã ou viciada [34] . Mesmo as acções exteriormente virtuosas, ou que tenham em si mesmas intrínsecos elementos virtuosos, dependem de que o agente que as leva a efeito as pratique numa disposição virtuosa: sabendo o que faz, tendo-o escolhido livremente e com com a in-tenção de produzir aquele acto, e tudo haver feito com ânimo decidido [35] . Não é a dis-cussão ou visão filosófica que conduz por si só à virtude, mas a prática da mesma. Co-mo nenhum doente se cura por concordar com o seu médico sem lhe cumprir as receitas.

Aristóteles divide os fenómenos da psique em três:

a) Estados afectivos ou afecções (apetite, cólera, medo, audácia, desejo, alegria, amizade, ódio, saudade, inveja, piedade – inclinações da alma que co-envolvem prazer ou desprazer);

b) Faculdades – aptidões ou capacidades para experimentar as afecções (do grupo a): por exemplo, a capacidade para experimentar a piedade, a inveja ou a cólera;

c) Disposições – o próprio comportamento concreto que tenhamos, bom ou mau, rela-tivamente às afecções. O exemplo é o da cólera: se nos abandonamos a ela ou a expe-rimentamos violentamente, a nossa cólera é má; já poderá ser boa se a vivemos com moderação (o que implica também adequação ao momento, proporcionalidade, etc.).

As virtudes (tal como os vícios) não são estados afectivos ou afecções, nem faculdades. São disposições: uma forma dada de viver as afecções [36] . Se a disposição é boa, estamos perante virtudes. Se é má, estamos perante vícios. Bom será quando se experimentam emoções como as dos estados afectivos referidos no momento oportuno, nos casos e relativamente às pessoas que convém, pelas razões e da forma adequada [37] .

A virtude é, assim, quanto ao seu modo-de-ser, um hábito, que se aperfeiçoa com a prática reiterada, desde a infância, e deve ser objecto da educação, por muito que os jovens tendam a recusar a virtude pelo prazer. Quanto ao seu conteúdo, a virtude aparece como una (embora se alargue por um certo leque de possibilidades – e não seja condenável um ligeiro desvio, quer num sentido quer noutro [38] ), por entre (e no meio) de uma pluralidade de erros, por excesso e por defeito. A virtude está realmente no meio [39] , entre dois exageros, embora não rigorosamente simétricos, dado que a natureza, em cada caso, normalmente mais nos inclina para um dos extremos. Mas este meio não é mediocridade ou mediania; é um cume na ordem da excelência e da perfeição [40] . A virtude está no meio: entre a cobardia e a temeridade, a coragem é a virtude, embora a temeridade seja menos criticável que a cobardia; entre a licenciosidade e a insensibilidade (nome sugerido pelo Estagirita), a virtude é a moderação (a que depois se chamará temperança); entre a prodigalidade e a avareza, a virtude está na liberalidade ou generosidade.

Devemos advertir para o facto de algumas destas palavras terem sofrido derrapagens conceituais. Liberalidade ou parcimónia podem significar algo diferente da virtude e do vício, respectivamente. Há também casos excepcionais, em que falta palavra para a virtude do meio, louvando-se, consoante os casos, os que agem segundo um ou outro dos termos extremos: como acontece no caso da ambição [41] . Na verdade, tanto se deplora a falta de ambição como o seu excesso… dependendo dos contextos.

Também no domínio das afecções há termos médios. Não sendo a reserva uma virtude, o reservado é louvado entre o tímido e o impudente. Mas em lugar de reserva não se diria melhor discrição ou circunspecção – sendo esta, além do mais, também uma “visão em volta”…o que dá melhor percepção das coisas? Aristóteles tem a noção de que o estado médio e virtude no caso da Justiça é o mais complexo. Remete para mais tarde o tratamento da mesma, desde logo adiantando que há dela duas espécies (a geral e a particular, ou jurídica, afinal). O filósofo não ignora o grau de subjectividade destas categorias. Numa palavra, sempre o cobarde chamará temerário ao corajoso, e aquele a este terá por cobarde [42] . A perspectiva depende muito do lugar em que cada um se posicione.

Prossegue depois o Livro III discorrendo sobre a questão da voluntariedade dos actos, das escolhas, e reafirma a voluntariedade de virtudes e vícios [43] . A partir do capítulo III, 9, após a recapitulação geral de III, 8, passa o autor à análise de virtudes em particular, a começar pela coragem.

Certamente pela sua importância diríamos “arquitectónica”, e como verdadeira ponte ou confluência entre a ética e a política, Aristóteles consagra o Livro V à Justiça.

III. DA JUSTIÇA

O principal (e importantíssimo) legado do Livro V das Éticas a Nicómaco é dirigido não aos políticos ou aos eticistas ou moralistas, mas precisamente a uma terceira ordem de especialistas, ainda dentro da filosofia do Homem: os juristas. Será até a filosofia aristotélica, aqui essencialmente enunciada, que permitirá fundamentar a existência de juristas e do direito como uma entidade epistemologicamente autónoma. Será, pois, nessa perspectiva que iremos brevemente reflectir sobre a Justiça em Aristóteles [44] .

O Estagirita começa por verificar a polissemia dos termos justiça e injustiça. Desde logo, destaca dois sentidos: o justo que o é pelo respeito à lei, e o justo que o é por respeito à igualdade. E concomitantemente os tipos de injustiça por desrespeito à lei e à igualdade (seja porque o injusto pretende mais do que lhe cabe nos bens, seja porque o injusto pretende menos do que seria seu dever nos males ou obrigações) [45] . Contudo, desde logo o filósofo compreende que a justiça da lei o é apenas num certo sentido [46] , e que a Justiça tem várias dimensões: quer como virtude, quer como outra coisa, quando se relaciona com os outros.

Enquanto qualidade da alma no sujeito, ela é virtude, e a mais perfeita das virtudes [47] . Mas é mais que isso, ou melhor: pode ser vista por outro ângulo ainda. Para melhor a surpreender, Aristóteles parte da injustiça para chegar à justiça [48] . E bem se compreende que possa haver uma injustiça mais claramente moral, mas em que o ganho material não seja o móbil do erro (mas, por exemplo, um vício eventualmente até não criminoso), enquanto outra injustiça implica claramente prejuízo material… No primeiro caso, está-se perante a injustiça que nega a virtude; no segundo, perante a injustiça que tem sobretudo conexão com a relação social, com os outros. Afinal, o primeiro caso é sobretudo uma imoralidade, e o segundo é uma injustiça num sentido restrito. Aliás, a nossa linguagem corrente recolheu precisamente a expressão injustiça para o segundo caso, sendo raro o seu uso no primeiro.

À justiça enquanto virtude chamamos em geral justiça geral ou total, enquanto à justiça mais específica que vimos existir também (a justiça cata meros) chamamos frequentemente justiça particular. Essa é o objecto próprio do direito, da arte jurídica. Pois, visando-se, como afirmará mais tarde Ulpianus, o suum cuique tribuere, é precisamente esta justiça que reparte as honras, as riquezas e (embora Aristóteles se lhes não refira neste ponto expressamente) as próprias sanções (que são o seu próprio dos infractores). A divisão Aristotélica era, de facto diversa, considerando uma justiça correctiva englobando nesta categorias duas subespécies: os actos voluntários, essencialmente contratuais e afins, de índole privada, e os actos involuntários, em que se chegam a incluir crimes [49] . A subdivisão não se nos afigura hoje de particular interesse ou sequer inspiração, porque a nossa sistematização jurídica é diversa.

As distinções que realmente importam não são tanto as que Aristóteles vai desenvolver, dividindo a justiça em distributiva e correctiva, esta última exercendo-se sobre transacções voluntárias e involuntárias, e estas últimas em clandestinas e violentas. O que se revelaria absolutamente essencial e marcou um corte epistemológico radical foi a distinção entre a justiça geral (matéria doravante da ética e da política) e a justiça particular (fundando o novo domínio à parte do direito).

Detenhamo-nos, pois, apenas um momento mais, sobre essa descoberta fecunda: a justiça particular. A justiça particular é assim uma relação, e uma relação entre pessoas e “coisas”, assumindo uma dimensão proporcional, de proporcionalidade geométrica. Os exemplos mostram a habituação matemática do Estagirita [50] . No final dessa indagação, que relaciona as pessoas com o suum de cada qual, conclui-se que a acção justa é um meio entre a injustiça cometida e a injustiça sofrida. Embora seja sempre complexa esta asserção, já que não se é culpado nem injusto por se sofrer uma injustiça, ao contrário do que sucede com os extremos das outras virtudes. Assim como se não pode ser injusto para si mesmo – o que será mais tarde advertido por Rousseau [51] .

De qualquer modo, é fácil compreender que a justiça está no meio, enquanto as injustiças estão nos extremos. A justiça pode então ser considerada uma disposição que arma o homem justo (dela dotado) da capacidade de ser um recto repartidor, quer entre outros, quer entre si e os outros: tomando exactamente o que lhe é devido, atribuindo a cada um o que é seu [52] . A injustiça será precisamente o inverso, e o homem injusto o que age contrariamente a este equilíbrio. No tempo do nosso filósofo, era mais patente que hoje a existência de direitos como que imperfeitos, proto-direitos, como o das relações entre pai e filhos, marido e esposa, senhor e escravo. A esses direitos opõe Aristóteles a justiça que se exerce entre cidadãos, a que chama justiça política. Esta distinção pode vir a ter interesse nos nossos dias, se usarmos os conceitos agilmente.

Outra re-descoberta fulcral de Aristóteles (porque não será o primeiro a compreendê-lo, constituindo tal noção um património praticamente universal não só das cvilizações pré-clássicas e clássicas como das orientais e extremo-orientais [53] ) é a divisão da justiça política em natural e positiva. É a clássica divisão entre direito natural e direito positivo [54] . O primeiro tem por toda a parte a mesma validade e não depende da opinião; o segundo é, à partida, indiferente, mas desde que estabelecido, é obrigatório. E Aristóteles dá como exemplo - um excelente exemplo - as penas. Na verdade, diversas segundo tempos e lugares, mas com sentido e funções semelhantes.

O Livro V termina com referência a algumas aporias da justiça, e referência ao valor da equidade, que é um justo superior a certa forma de justo (mais dura, mais rigorosa, no sentido do mais gravoso) [55] . Afigura-se-nos que hoje se poderá dizer que a equidade faz parte da verdadeira justiça [56] . A reflexão de Aristóteles sobre o direito em geral é assim sobretudo levada a cabo no trânsito da ética para a política, mas ainda co-locada sistematicamente no domínio da primeira. Já o direito público, e especificamente o constitucional, será objecto de estudo nos livros das políticas. Questões jurídicas ou para-jurídicas ou de interesse para o jurista também se encontram na Retórica, nos Tópicos do Organon, etc. Mas a sistematização encontra-se naquelas duas obras.

IV. AS POLÍTICAS

1. Pioneirismo, Metodologia e Terminologia

Como não dispomos de todas as presumíveis obras de Aristóteles, desde o Político (dois livros) e o Da Justiça (quatro grandes livros), de que nos dá notícia Cícero [57] , assim como de outros estudos (Alexandre ou da Colonização, Da Monarquia) [58] , e tendo como frutuoso, como dissemos, o cânone que nos chegou (até por inconsistência e falta de consensualidade de qualquer ordenação alternativa), vamos proceder por sinédoque, concentrando-nos nos oito livros das Políticas.

Trata-se de um trabalho sem verdadeira homogeneidade estrutural, muito provavelmente fruto de apontamentos dos estudantes do Estagirita. Quanto a essa característica, que determina não só o estilo como esse meio caminho entre a forma e o fundo que reflecte a pressa quase taquigráfica no colher das notas, são muito eloquentes as palavras de Marcel Prélot, no Prefácio à sua edição das Políticas [59] .

Alguns pressupostos metodológicos e de perspectiva geral, assim como circunstâncias do trabalho de Aristóteles, constituem um pano de fundo em que os argumentos se inserem. Não podemos deixar de desde logo os evidenciar, tanto mais quanto não têm sido suficientemente postos em relevo.

A primeira circunstância que determina o trabalho do Estagirita em matéria política é o seu carácter pioneiro. Ele é, que se saiba, o primeiro grande sistematizador das coisas políticas. É ele que elabora a teoria, tece as malhas e abre as chavetas da taxonomia das formas de governo, estuda-lhes a etiologia e a patologia, indica-lhes a terapêutica a cada uma adequada. É o biólogo, o classificador de chaves dicotómicas, de tabelas taxonómicas das coisas políticas, para tanto necessariamente aproveitando a sua formação científico natural, aprendida desde logo com seu pai, Nicómaco, médico do rei Filipe da Macedónia. Aristóteles não deixará de transparecer, no texto, este proceder de botânico ou de zoólogo. O seco e esquálido texto de classificação é todavia amenizado, quer por judiciosíssimas observações que se revelariam perenes (e que por isso nos interessam, e de algum modo re-confortam, até pela familiaridade), porque indo ao âmago da natureza humana – a qual, sendo mutável [60] , em política parece mudar muito pouco – quer por frequentes citações, sem dúvida de cor e improviso, de múltiplos poetas, as quais, ao contrário decerto da novidade pesada do tratado sistemático de uma episteme nova, encontrariam no auditório culto, habituado à memorização da poesia, amarras de reconhecimento, funcionando assim, ainda que insensivelmente talvez, como uma forma de invocação da memoria, e um meio de captatio benevolentia.

Esta circunstância de pioneirismo implica algumas características inconfundíveis e determinantes deste trabalho de Aristóteles. Elas manifestam-se sobretudo no plano da relação entre os conceitos e as designações, os significantes e os significados. Por um lado, Aristóteles assume a necessidade de uma grande abertura designatória, e explicitamente concede que há situações em que não se encontra uma expressão adequada para abarcar a realidade que se pretende designar [61] , assim como se não prende às palavras, explicitamente afirmando que o que importa é a compreensão das coisas e não as expressões que as designam [62] .

Os conceitos utilizados revelam-se árduos a nossos olhos, grande parte das vezes pela derrapagem ou mesmo subversão semântica de certas palavras.

Aristóteles, que não poderia prever pelo menos o sentido de uma ulterior metamorfose linguística, é o primeiro a fazer tais observações, no quanto ao seu tempo tangia, bem como quando confrontado com significados mais antigos, ou com polissemias coevas. Assim, ora se congratula com a adequação do significado ao significante [63] , ora assinala a polissemia – como quando afirma que politeia tanto é a polis em que a multidão governa para a utilidade pública (e que tem sido traduzida de múltiplas formas: república, democracia, governo constitucional, etc.), como um nome comum a todas as sociedades políticas [64] . Se Aristóteles dá o nome de democracia à sociedade política que corresponde à corrupção da politeia (tida não como designação geral, mas como república, etc..), fá-lo, contudo, com duas prevenções. A primeira é a de que se se quer que a democracia ainda seja uma forma de governo, haveria que não usar tal nome para o caos resultante da perversão da politeia-república. Nestes termos o afirma:

“Não é sem razão que se censura tal governo e, de preferência, o chamam democracia ao invés de República; pois onde as leis não têm força não pode haver República, já que este regime não é senão uma maneira de ser do Estado em que as leis regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares. Se, no entanto, pretendermos que a democracia seja uma das formas de governo, então não se deverá nem mesmo dar este nome a esse caos em que tudo é governado pelos decretos do dia, não sendo então nem universal nem perpétua nenhuma medida” [65]

A segunda é uma observação de história da língua e evolução semântica: o Estagirita invoca um uso mais antigo de “democracia”, em que este nome se identifica com a sua politeia-república. Parece que, apesar da corrupção do termo nos nossos dias, voltamos a recuperar o sentido pré-aristotélico de “democracia”.

2. Natureza, Sociabilidade e Política

Muito vulgarizada é a expressão do Estagirita - zoon politikon. O Homem é um animal político, ou social: quem não é impelido a estar com os outros homens ou é um deus ou um bruto – e a linguagem é o sinal dessa sociabilidade. Na verdade, o Homem é, por natureza, especialmente um ser da Polis. Pois o Filósofo atribui à Polis um sentido muito profundo e como que transcendente.

Sendo a natureza de cada coisa o seu fim, Aristóteles considera que a Polis – que é contudo uma forma sócio-política determinada e não se confunde com outras – se encontra nos próprios desígnios da natureza. Além do mais, a própria sociedade política, que na Polis adquire a sua forma mais perfeita, seria mesmo “o primeiro objecto a que se propôs a natureza” [66] .

A imbricação da natureza humana com a política, é muito visível em Aristóteles, e corrobora o seu intento de construir uma una episteme do Homem. Por isso pode afirmar: “assim como o homem civilizado é o melhor de todos os animais, aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de todos” [67] . A natureza humana é, pois, necessariamente, uma natureza social e política, com uma dimensão irrecusavelmente jurídica.

A reflexão tendo como base a questão fundante e primacial da natureza manifestar-se-á no capítulo do “governo doméstico”. Um dos aspectos em que se revela é na discussão sobre a escravatura natural e a escravatura convencional. Estas matérias serviriam para os detractores de Aristóteles o apresentarem pura e simplesmente como esclavagista. E assim procuraram denegrir outras posições suas, quer sobre política, quer sobre Direito – nomeadamente sobre o próprio Direito Natural. Mas, na verdade, trata-se de encarar o problema de forma muito subtil para o seu tempo. Ora, quer a sua condição de meteco, quer o seu casamento (que o não fez subir na escala social), quer ainda o seu testamento demonstram quanto sentia a sorte dos servos e excluídos. Por outro lado, estava advertido de que a escravatura era determinada pelo estádio de desenvolvimento das forças produtivas do seu tempo, especificamente da técnica: pelo que, numa fórmula clássica, quando os moinhos se movessem por si, então, poderia deixar de haver escravos. Contudo, parece certo que, mesmo em sociedades como as actuais, persistem tipos psicológicos que são de escravatura por natureza: mesmo se sentados em tronos doirados… Tal não justifica, evidentemente, o esclavagismo – diremos nós – mas o interessante é a intuição psicológica do Estagirita, na linha da observação natural.

Também no domínio da economia, Aristóteles se posiciona pela natureza – como veremos infra. Assim, é desfavorável ao comércio, e sobretudo à usura – por anti-naturais.

Há, portanto, dois vectores essenciais sobre que parece fundar-se boa parte do pensamento político de Aristóteles: o vector natureza e o vector sociabilidade. A Polis parece reunir assim, em síntese, a natureza do Homem, que será de cidadania.

3. A Cidadania, a Virtude e a Felicidade

Aristóteles, bom filósofo, bom intelectual, mas também dotado de um agudo sentido prático, do dever e da acção, não deixa de discutir os prós e os contras da vida activa e da vida contemplativa.

Cidadão é, em geral, o homem politicamente activo, politicamente partícipe da coisa pública. Sobretudo se for membro de assembleia deliberativa ou juiz, ou seja, se, de algum modo ou em alguma medida, participar do poder público. E especialmente se o enquadramento geral da sua participação política for, precisamente, uma forma política propícia a essa participação, como a democracia.

Podendo haver diversas formas de cidadania, e várias classes ou tipos de cidadãos, a verdade é que Aristóteles compreendeu bem que pode haver uma cidadania mais formal que real, e que a verdadeira cidadania implica uma efectiva participação (até nos cargos – e o autor cita o próprio Homero em seu abono [68] ). Esta ordem de ideias leva a uma conclusão talvez chocante, mas muito verdadeira: é que sem um mínimo de ócio e de ilustração, não se pode ser verdadeiro cidadão, até porque se não pode participar, por falta de tempo e de disponibilidade mental, reflexiva. Não é, assim, por elitismo ou outro qualquer complexo de exclusão que Aristóteles considera não poder um artesão ser um autêntico cidadão. É que ele não se encontra suficientemente livre, e não alcançará a plena virtude, que é incompatível com uma vida “mecânica e mercenária” [69] .

E nem sequer o homem de bem e o bom cidadão são uma e a mesma coisa, pois requerem diferentes virtudes. Quem comanda, por exemplo, deve ter como principal virtude a prudência. E é muito adequado que os cidadãos sejam tão capazes de mandar como de obedecer…

Mas o que será melhor: participar activamente na cidadania, ou remeter-se para o recolhimento da vida privada? Para responder a esta questão, Aristóteles procura primeiro indagar qual a verdadeira felicidade. Porque não é ser-se político ou ser-se particular de qualquer forma que está em causa, mas a excelência da vida política, de um lado, e a excelência da vida privada, por outro.

Neste sentido, antes de mais, deve investigar-se sobre as condições da felicidade particular. E, ao contrário do que muitos pensam, tanto nesse tempo como hoje, tal felicidade não reside na acumulação da riqueza ou dos bens exteriores, que apenas são instrumentos úteis. Assim, o que realmente importa são a inteligência e costumes excelentes, os bens da alma.

E assim encaradas as coisas, a felicidade pública não difere da felicidade privada. Tal como acerca da felicidade privada, também os juízos se dividem sobre a pública, e de forma concorde e simétrica: os que louvam a riqueza privada como suprema felicidade, enaltecem os estados ricos; os que na vontade de poder, na dominação, no despotismo privado vêm a maior felicidade, louvam os estados opressores ou dominadores de outros; e finalmente os que prezam as virtudes privadas vêem a felicidade nas virtudes públicas. Aristóteles conta-se entre estes últimos.

Mesmo assim, o problema não se encontra resolvido. Porque a vida virtuosa pode ser mais activa ou mais contemplativa. E aí não há unanimidade entre os que louvam a virtude em geral.

O Estagirita não dá a este problema uma resposta imediata, o que parece sinal de alguma ponderação, e até hesitação inicial. Aproveita para reforçar a ideia da necessidade de uma sociedade política honesta, e sublinha que as constituições dos estados não devem ser todas idênticas – aqui revelando o seu não-utopismo.

A descrição das duas posições sobre o envolvimento político é muito vívida, e poderia ter sido escrita por um autor de qualquer época, revelando não só dois tipos de pessoas, como ainda duas tendências contraditórias que por vezes se encontram em guerra no mesmo indivíduo:

“Uns não dão nenhuma importância aos cargos políticos e consideram a vida de um homem livre muito superior à que se leva na confusão do governo; outros preferem a vida política, não acreditando que seja possível não fazer nada, nem portanto ser feliz quando não se faz nada, nem que se possa conceber a felicidade na inacção”.

E agudamente comenta o Filósofo, com palavras de uma emudecedora sabedoria:

“Uns e outros têm razão até certo ponto e se enganam sobre o resto”.

E explicita as limitações e as ilusões de uns e outros. Aproveita para sublinhar a necessidade da igualdade entre os semelhantes, sendo contra a natureza e assim contra a honestidade a desigualdade que não derive da dissemelhança, assim como a necessidade do mérito provado e de energia muito activa para que alguém mereça ser obedecido.

Tudo exposto, tudo ponderado, pronuncia-se a favor da vida activa, mas não da mera acção pela acção. A felicidade estará na acção política, desde que devidamente precedida pela meditação. A felicidade é, assim, tanto nos particulares como nas sociedade políticas, fruto de uma acção ponderada, previamente reflectida. De uma acção fruto da virtude, e de uma virtude pensada.

A cidadania tem, pois, de ser virtude, e só ela conduzirá à felicidade.

4. As Formas de Governo e os Poderes

As Formas de Governo

Aristóteles utiliza dois critérios combinados para determinar as formas de constituição: o número de governantes e a sua inclinação para a Justiça.

Considerando-se governo o supremo poder numa sociedade política, a questão das constituições reconduz-se à das formas de governo. O critério da justiça das constituições reforça esta ideia, na medida em que a avaliação da justiça, numa constituição, se aquilata pela forma concreta pela qual, seja um, sejam vários, sejam todos (aqui entra o critério do número) os governantes se inclinam a prezar mais a felicidade geral que a própria.

Há assim (pela variação do número de governantes) várias modalidades de constituições justas, e cada uma delas pode engendrar, em certas condições de corrupção, a respectiva forma injusta.

Nestes termos, na monarquia um príncipe honesto, e único, vela pelo interesse comum; na aristocracia o encargo da felicidade pública é cometido a um grupo, escolhido de entre os mais honestos; e na politeia (cuja tradução, como sabemos, oscila entre república, democracia e até estado constitucional) é a multidão que governa para a utilidade comum.

A degeneração das formas de governo ocorre paralelamente a estas categorias: na monarquia corrompida, o monarca vira-se para a sua utilidade e descura a geral, passando-se assim a uma tirania; na oligarquia, que é a corrupção da aristocracia, desvia-se o governo para a utilidade dos ricos; finalmente, a politeia pode corromper-se numa forma de governo somente preocupada com a utilidade dos pobres ou dos mais desfavorecidos. A essa forma de governo chama Aristóteles democracia… Mas sabemos que há que ter cuidado com as designações, e muito especialmente com as do governo por muitos, seja na forma pura, seja na corrupta – questão já analisada pelo próprio Estagirita.

Aristóteles especifica e desenvolve cada forma de governo, por exemplo elencando quatro (ou cinco) tipos-ideais de monarquia, ou comentando o problema de que, não sendo embora normal, poder haver mais ricos que pobres em casos muito excepcionais – o que coloca problemas de classificação. Alude ainda a fórmulas específicas, segundo princípios redutores de governo: a Aisymnetia, ou despotismo electivo, a Ponerocracia, governo de más leis, etc.

Também admite fórmulas um tanto mistas, que acabam por ter o nome de “República”. A “República” é assim uma forma louvada por Aristóteles que curiosamente associa elementos de duas formas degeneradas: a oligarquia e a democracia [70] . Esta forma de governo assenta socialmente na classe média, combinando dois princípios que de algum modo se equilibrariam: a riqueza, princípio oligárquico, e a liberdade, princípio democrático. E Aristóteles louvará a classe média [71] , considerando, nomeadamente, com o apoio de várias autoridades e exemplos, que os melhores legisladores foram precisamente pessoas de medianas posses.

Mas, evidentemente, a concepção de democracia de Aristóteles, mesmo quando não é usada com uma conotação negativa, tem diferenças relativamente à vox populi de hoje: por exemplo, para o Filósofo é próprio da democracia o sorteio dos magistrados, e da oligarquia a eleição.

A tirania é sem hesitação qualificada como o pior dos governos. Seguida da oligarquia, que se distingue muito da aristocracia, de onde deriva, a qual comporta também várias modalidades.

Clarifica Aristóteles que nem a oligarquia é o regime da minoria, nem, correlativamente, a democracia é o da maioria. Antes a primeira é o domínio dos ricos, e a segunda dos homens livres.

Também a democracia tem diversas formas. O grande problema surge quando as leis não têm força e irrompem da multidão os demagogos. E então o povo se volve em tirano, e - como esta descrição é real! –

“os bajuladores são honrados e os homens de bem sujeitados. O mesmo arbítrio reina nos decretos do povo e nas ordens dos tiranos. Trata-se dos mesmos costumes. O que fazem os bajuladores de corte junto a estes, fazem os demagogos junto ao povo.” [72] .

E é nesta corrupção da lei, da magistratura, do clima geral, que o Filósofo vê justificação para que tal caos se não chame República, mas democracia, ou então nem isso – como citámos supra.

Os Poderes

O celebrado Montesquieu, tido por pai absoluto da separação dos poderes, não os criou do nada, como pretendeu no exergo latino do seu De l’Esprit des Lois, citando Ovídio: “Prolem sine matre creatam“. Além de ter tido John Locke como inspirador mais directo, conhecia evidentemente o clássico Aristóteles. Os poderes, a traços largos, já estão nas Políticas do Estagirita.

Em todas as constituições vê Aristóteles, com vivo discernimento, precisamente três poderes: um poder deliberativo, que compete a uma Assembleia, e que muito se assemelha ao nosso legislativo; um poder de magistraturas governamentais, a que nós chamaríamos (com menos propriedade, porém) executivo; e um poder judicial.

Há, evidentemente, várias formas de assembleias deliberativas. Importa sobretudo salientar que quando as deliberações sobre todas as matérias pertinentes a este poder são decididas por todos os cidadãos, nos encontramos em democracia. Mesmo assim, existem diversas formas de esta deliberação igualitária se poder exercer.

Mas há a possibilidade de os poderes se encontrarem divididos. Nesse caso, estaremos numa aristocracia ou numa república. Havendo possibilidades mistas.

No domínio do poder executivo, Aristóteles demora-se nos diferentes cargos, não esquecendo propostas interessantes (e ainda actuais nos nossos dias) como a da rotatividade dos cargos de carcereiros, a conveniência da não acumulação de cargos e da não renovação de mandatos, a não ser após longos intervalos, e mesmo assim só em alguns casos.

Embora Aristóteles não esqueça, no domínio do executivo a que chamaríamos administração pública, vários cargos de índole ou implicações jurídicas, é sobretudo descritivo nas formas de que se pode revestir o judiciário.

5. A Propriedade

Sendo Aristóteles uma referência para múltiplos autores ulteriores, e como, para as matérias ideológicas e políticas, uma pedra de toque essencial é a propriedade (que sobretudo se agudizará como nó do problema sobretudo em autores mais recentes) impõe-se duas linhas sobre a propriedade na obra do Estagirita, no seguimento do que muito rapidamente dissemos já.

Aristóteles inclina-se para uma teoria da propriedade concorde com a natureza. Não tendo propriamente elaborado uma teoria geral da propriedade, não deixa de sobre ela reflectir, como objecto directo do seu estudo, sobretudo nas Económicas, fazendo a tal nas Políticas apenas uma breve referência. Considerando que a diferença essencial entre a política e a economia é que a primeira versa sobre a cidade e a segunda sobre a arrumação da casa, ou seja, sobre a administração da comunidade doméstica, envolvendo a primeira o governo de muitos e a segunda o governo de um só, o Estagirita considera precisamente que tal comunidade se compõe do homem e da propriedade.

Para Aristóteles, a primeira preocupação é a de que a propriedade esteja de acordo com a natureza. Neste sentido, privilegia de entre as actividades económicas a agricultura, por melhor realizar a justiça. Já que a actividade agrícola não implicaria o trabalho, como no comércio e artes mecânicas (não se fala ainda de indústria ou de serviços), mas um esforço salutar, oferecendo a mãe natureza igualmente a todos os seus frutos.

Ao falar de propriedade, Aristóteles verdadeiramente não a discute na sua essência e no seu sentido social, embora haja um fumus de aspiração à natural igualdade dos homens na exaltação da agricultura, ligada à mãe natura.

6. O Problema da Cidade Ideal

Não foi só Platão que pensou na República ideal. Aristóteles tem também ideias a propósito do melhor governo…

Mas Aristóteles não pode ser considerado um verdadeiro cultor do género utópico. Para ele não há um tipo de sociedade política perfeito, independentemente do tempo, do lugar, das pessoas. Não estabelece de forma abstracta e racionalista, geometricamente o dever-ser. Apercebe-se das vantagens e dos inconvenientes de cada forma de governo, estuda as suas formas de corrupção respectivas, e inclina-se para um regime misto, e mesmo assim com tanta moderação que não ousa ir além de um acerto da pureza com a corrupção...

Onde a sua perspectiva mais se inclina para um certo utopismo é no domínio da formação, da educação. Ciente de que nas

“nossas democracias, sobretudo nas que passam por ser as mais populares, a instrução não tem um valor maior; reina ali uma liberdade mal compreendida” [73] .

E citando Eurípides, o Estagirita concorda com o trágico quando este considera que um sofisma miserável faz pensar que a liberdade e a igualdade permitem a cada um comportar-se a seu bel-prazer [74] . Por isso, Aristóteles crê que é muito importante uma educação que desde cedo (desde a própria concepção – e daí a eugenia) crie cidadãos honestos, capazes de bem conhecerem os caminhos para a felicidade.

O legislador deve, assim, indelevelmente marcar o espírito do povo que deve educar.

É por isso mister que se estabeleçam hierarquias: subordinando o necessário e o útil ao honesto, a guerra à paz, o trabalho ao ócio.

Desde as idades para a procriação à melhor estação do ano para a geração, muitas matérias ocupam Aristóteles na preocupação eugénica. E na pedagógica também, como a educação infantil, ou o lugar e o papel da ginástica e da música.

Aristóteles, sendo aquilo a que hoje chamaríamos um moderado, sabia, porém, que a educação tem de ter alguma directividade, sob pena de se negar a si própria, e tem de ser pública, cremos que para uma aculturação e preparação relativamente homogénea de todos – o que também tem a ver com uma certa igualdade necessária à boa ordem da polis. Tudo acaba por desembocar e depender da Educação. Como diz o velho brocardo: paideia teleion ton nomon – a educação é superior às leis. Eis que o círculo da ciência do humano se fecha – na Educação.

São Paulo, Setembro de 2003 – Porto, 24 de Agosto de 2004


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[1] Texto elaborado a partir dos tópicos do nosso Seminário sobre Ética e Política em Aristóteles, a cargo da Profa. Doutora Gilda Naécia Maciel de Barros, no âmbito da disciplina "Educação na Antigüidade Grega - Práticas e Modelos", do Curso de doutorado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em Setembro de 2003.

[2] Para mais desenvolvimentos, cf. o nosso O Tímpano das Virtudes, Coimbra, Almedina, 2004.

[3] Henry Thomas / Dana Lee Thomas, “Aristóteles”, in Vidas de Grandes Filósofos, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 25.

[4] Se o nosso tempo tem procurado recuperar o rosto humano dos filósofos, e até a sua petite histoire, não é apesar de tudo muito comum mesclar-se o ensaio sobre o pensamento de um filósofo com extensas ou interpretativas reflexões biográficas. Uma curiosa semi-excepção, pela avaliação extraordinariamente positiva que faz do Filósofo como homem de bem, podemos encontrar, no âmbito deste nosso estudo no Prefácio de Marcel Prélot à sua tradução da Política de Aristóteles, nas Presses Universitaires de France. Há edição brasileira: Aristóteles, A Política, trad. de Roberto Leal Ferreira, 2.ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 1998.

[5] Aristóteles, Ética a Nicómaco, II, 2.

[6] Werner Jaeger, Aristóteles. Grundlegung einer Geschichte seiner Entiwicklung, Berlim, 1923, trad. cast. de José Gaos, Aristóteles, 2.ª reimp., México, Fondo de Cultura Económica, 1984.

[7] Ingemar Duering, Aristóteles. Darstellung und Interpretationen seines Denkes, Heidelberg, 1966.

[8] Josef Zürcher, in Aristoteles Werke und Geist, 1952.

[9] Werner Jaeger, Aristóteles, p. 36.

[10] Pierre Pellegrin, “Introduction” a Les Politiques, de Aristótles, Paris, Flammarion, 1990, p. 66.

[11] Sobre esses exercícios ou manobras de « diversão » ou « distracção », v.g., Gilles Lane, À quoi bon la Philosophie, 3.ª ed., Québec, Bellarmin, 1997.

[12] Afigura-se-nos que o principal legado aristotélico de âmbito político residirá nos oito livros das Políticas, na medida em que várias obras atribuídas ao Estagirita se perderam. Cf. W. Jaeger, Aristóteles, p. 298 ss.. Todavia, não curaremos expressis verbis deles, centrados que estamos na questão ético-jurídica, sem prejuízo de aludirmos aqui e ali ao intuito teórico-político do Autor, que é indissociável do empreendimento ético-jurídico.

[13] Aristóteles, Poética, I (1447 a).

[14] Cf. uma comparação desta perspectiva com a noção física de natureza enquanto simples fusis, em Aristóteles: Werner Jaeger, Aristóteles, p. 301.

[15] Aristóteles, Políticas, VIII, 1.

[16] Também a Ética a Eudemo, I, 5 colhe a mesma doutrina.

[17] [18] Aristóteles, Ética a Nicómaco, X, 10.

[19] Aristóteles, Organon, Tópicos, max. 104 a), 105 a). (ed. port. com trad. e notas de Pinharanda Gomes, Organon, vol. V. Tópicos, Lisboa, Guimarães Editores, 1987, Livro I, max. 10 e 11, pp. 25-30).

[20] Aristóteles, Ética a Nicómaco, I, 1, in fine.

[[37] Aristóteles, Ética a Nicómaco, II, 5.

[38] Aristóteles, Ética a Nicómaco, II, 9.
[39] Sobre esse “meio termo ético” aristotélico, cf., v.g., Giorgios Iliopoulos, Mesotes und Erfahrung in der Aristotelischen Ethik, in Filosofia,, n.º 33, Atenas, 2003, p. 194 ss..

[40] Aristóteles, Ética a Nicómaco, II, 6.

[41] Aristóteles, Ética a Nicómaco, II, 7. Ibidem, IV, 10.

[42] Aristóteles, Ética a Nicómaco, II, 8.

[43] Aristóteles, Ética a Nicómaco, III, 7.

[44] Cf., sobre esta matéria, o nosso O Comentário de Tomás ao Livro V da Ética a Nicómaco de Aristóteles, São Paulo / Porto, “Videtur”, n.º 14, 2002, pp. 45-58 - edição electrónica http://www.hottopos.com/videtur14/paulo2.htm, hoje no nosso O Século de Antígona, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 43-70, max. 57 ss.

[45] Aristóteles, Ética a Nicómaco, V, 2.

[[51] Sobre ambas as dificuldades, v.g., W. C. K. Guthrie, History of Greek Philosophy, vol. VI, Aristotle: an Encounter, reimp., Cambridge, Cambridge University Press, 1983/1990, p. 372. Cf. Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat social, II, 6 : « (…) nul n'est injuste envers lui-même». Embora o contexto seja discutível…

[52] Aristóteles, Ética a Nicómaco, V, 9.

[53] Cf., v.g., Antonio Truyol Serra, História da Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, trad. port. de Henrique Barrilaro Ruas, Lisboa, Instituto de Novas Profissões, 1985.

[54] Aristóteles, Ética a Nicómaco, V, 10.

[55] Aristóteles, Ética a Nicómaco, V, 14.

[56] António Braz Teixeira, Reflexão sobre a Justiça, in “Nomos. Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado”, n.º 1, Janeiro-Junho 1986, máx. pp. 58-59.

[57] Cícero, De Rep., III.

[58] Mais desenvolvimentos in W. Jaeger, Aristóteles, p. 298 ss..

[59] Aristote, La Politique, Paris, PUF, trad. port., A Política, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. IX ss..

[60] Por exemplo, no testemunho de um “aristotélico” como Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II IIae, q. 62, art. 2, Respond., ad primum: “Natura autem hominis est mutabilis”.

[61] Observação que já ocorrera na Ética a Nicómaco, aliás, a propósito de alguns termos de virtude ou vício. Agora, Aristóteles, A Política, p. 43: “Não possuímos, com efeito, um termo comum sob o qual possamos colocar a função de juiz e a de membro da Assembleia. Será, se se quiser, um poder sem nome”.

[62] Aristóteles, A Política, p. 42: “Terão o nome que se quiser: o nome não importa desde que sejamos compreendidos”. Cf. Uma outra visão contra, de Platão, pode ver-se no Teeteto.

[63] Aristóteles, A Política, p. 106: “Todos estes termos são bem escolhidos”

[
[69] Ibidem.

[70] É interessante que, tendo compreendido a essência do governo misto, Aristóteles prefere uma forma mista que associa não os três elementos puros, mas um puro e um corrompido. O primeiro a preferir o governo misto a partir da combinação monárquica, aristocrática e democrática, que vê em Roma, será o grego romanizado Políbio.


fonte: http://www.hottopos.com/rih8/pfc.htm



ARISTÓTELES
Aristóteles (384-322 a.C.) foi aluno da Academia de Platão. Era natural da Macedônia e filho de um médico famoso. Seu projeto filosófico está no interesse da natureza viva. Ele foi o último grande filósofo grego e também o primeiro grande biólogo da Europa. Utilizava-se da razão e também dos sentidos em seus estudos. Criou uma linguagem técnica usada ainda hoje pela ciência e formulou sua própria filosofia natural.

Aristóteles discordava em alguns pontos de Platão. Não acreditava que existisse um mundo das idéias abrangedor de tudo existente; achava que a realidade está no que percebemos e sentimos com os sentidos, que todas as nossas idéias e pensamentos tinham entrado em nossa consciência através do que víamos e ouvíamos e que o homem possuía uma razão inata, mas não idéias inatas. Para Atistóteles, tudo na natureza possuía a probabilidade de se concretizar numa realidade que lhe fosse inerente. Assim, uma pedra de granito poderia se transformar numa estátua desde que um escultor se dispusesse a escupi-la. Da mesma forma, de um ovo de galinha jamais poderia nascer um ganso, pois essa característica não lhe é inerente.

Aristóteles acreditava que na natureza havia uma relação de causa e efeito e também acreditava na causa da finalidade. Deste modo, não queria saber apenas o porquê das coisas, mas também a intenção, o propósito e a finalidade que estavam por trás delas. Para ele, quando reconhecemos as coisas, as ordenamos em diferentes grupos ou categorias e tudo na natureza pertence a grupos e subgrupos. Ele foi um organizador e um homem extremamente meticuloso. Também fundou a ciência da lógica.

Aristóteles dividia as coisas em inanimadas (precisavam de agentes externos para se transformar) e criaturas vivas (possuem dentro de si a potencialidade de transformação). Achava que o homem estava acima de plantas e animais porque, além de crescer e de se alimentar, de possuir sentimentos e capacidade de locomoção, tinha a razão. Também acreditava numa força impulsora ou Deus (a causa primordial de todas as coisas).

Sobre a ética, Aristóteles pregava a moderação para que se pudesse ter uma vida equilibrada e harmônica. Achava que a felicidade real era a integração de três fatores: prazer, ser cidadão livre e responsável e viver como pesquisador e filósofo. Cria também que devemos ser corajosos e generosos, sem aumentar ou diminuir a dosagem desses dois itens. Aristóteles chamava o homem de ser político. Citava formas de governo consideradas boas como a monarquia, a aristocracia e a democracia. Acreditava que sem a sociedade ao nosso redor não éramos pessoas no verdadeiro sentido do termo.

Para ele, a mulher era "um homem incompleto". Pensava que todas as características da criança já estavam presentes no sêmen do pai. Sendo assim, o homem daria a forma e a mulher, a substância. Essa visão distorcida predominou durante toda a Idade Média.

Ainda há esperança. Que venham os futuros líderes deste país...

Jovens querem ser políticos

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